não é sobre amor

Cláudia Feltrin
3 min readJan 26, 2020

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nunca foi tão sufocante compartilhar do mesmo ar que você porque agora parece tudo mais pesado. sinto os pedacinhos dessas vísceras escoando pra fora de mim pra fora daqui pra fora desse lugar porque agora entendo que já perdi muita coisa que não retorna mais. os dentes de leite os zilhões de fios de cabelo no ralo do chuveiro a inocência as cartas que te escrevi a pele dos dedos a coragem tudo tudo tudo e mais algumas coisas que gosto de pensar que não porque assusta demais assimilar que já. tem muita coisa aqui que não costumava ser minha não costumava ser eu esse par de olhos esse cansaço esse medo de olhar alguém devagar demais essa supressão do que me brindava arrepios e eu me pergunto o que é essa incessante condição de contrição? por que a gente chegou aqui nesse ponto nessas arestas nessa dúvida impenetrável se esse fio ainda ampara os baques ou se já quebrou? os pesadelos foram embora e parei de te procurar pelas ruas porque a cada dia te conheço menos. deixou de ser medo mas agora é precaução e cê sabe se é pior? porque eu não sei se é progresso ou vinte passos pra trás mas francamente prefiro não te perceber ferida só que é isso que eu não entendo por que dói tanto se não se é? é que de certa forma eu percebo agora a escassez de honestidade e os erros que por tanto eu quis entender como meus por não aceitar que você também peca; entendo agora alguns dos pontos finais, não todos. alguns são uma grande incógnita que eu não sei quando é que vão atenuar. ou se um dia vão. e por todas essas coisas que você fez questão de me apresentar como inofensivas quando eram ervas daninhas das mais difíceis de abolir porque em ti nada disso nunca doeu. cê nunca teve os mesmos motivos que você me deu. só aqui. por tanto guardar e sufocar as feridas que você abriu em mim pra não te machucar. por tanto me entender e aceitar como o assombro e a nascente de todos os erros pra não te fazer experimentar de nenhuma gota dessas toneladas. assusta perceber o quão irresponsável fui eu em me entender merecedora das tuas migalhas das tuas meias verdades de todos os pregos que você permitiu me rasgarem a pele enquanto tentava relevar essa dor que nunca foi tua pra descrever com insignificância. é duro perceber que não te pesa ter me jurado amor por tanto tempo sem ter nem ideia do que se trata. por que machuca tanto se você me diz que é amor? por que te amar é tão cansativo? tenho pedido perdão pelas transgressões a qualquer deus que me escute pra ver se isso dá crédito a implorar apagar teus vestígios de mim. nunca doeu tanto como dói agora aqui encolhida nesse cantinho porque é duro demais só entender a verdade e todos os as que vêm junto dela depois de ter martelado teu nome tantas vezes em cada confim dos meus neurônios. mas a verdade é que me alivia saber que cada pedaço de pele e carne luta pra te expulsar daqui porque já deixou de ser justo doer tanto nesse extremo da cidade e aí já não te perturbar os ombros por todas as feridas que você nem fez questão de querer ouvir. me assusta ter entendido que não é sobre amor. se fosse, você nunca teria regado tantas ervas daninhas. te percebo agora mas não sei quem você é. tua fala não me faz mais sentido. e já não sei mais das tuas verdades. depois de tanta merda as lembranças boas já deixaram de me fazer lar

e daqui te apago junto delas

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